quinta-feira, 14 de maio de 2009

Sobre a Observação Participante

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O que significa observação participante? Imagino que seja uma expressão muito repetida entre os antropólogos. E tenho a impressão de que ela seja muito importante para a antropologia, por se tratar de uma das suas marcas distintivas (Basham, 1978: 25). O seu significado parece claro. Todavia, tive o privilégio de ter um professor[1] que questionou essa clareza aparente. Pois, para ele, a expressão observação participante é uma associação de palavras impossível. Com efeito, os significados a que cada uma das duas palavras se refere não se misturam; é impossível, para ele, observar-se e participar-se em simultâneo – como se a expressão fosse observar participando...

Gostaria de me referir, por alguns instantes, à minha experiência no uso da observação participante na pesquisa que estou realizando sobre os seguidores de Ras Tafari em Moçambique; em Maputo particularmente. Tive o privilégio de ser aceito nas suas cerimónias. Ao seguidor que me atendeu, eu disse que o meu objectivo era visitar o grupo. O pedido foi aceito, mas tinha de vestir calças visto que eu estava de calções (com uma câmara de fotografia e de filme num dos bolsos). Perguntei-lhe se me era permitido tirar fotografias e ele respondeu-me que poderia fazé-lo só no fim da cerimónia. De facto, a mim, interessava mais observar e não participar; a mim, interessava mais ver, ouvir, fotografar, filmar, fazer registos no meu caderno de notas, etc. E parece-me claro que, para isso, não precisava de vestir calças, descalçar os meus sapatos, cobrir os braços – como alguém me ordenou numa das vezes seguintes.

Admito a possibilidade de ter sido compreendido mal; é possível que tenha sido compreendido que eu quisesse participar. Neste ponto, acho que devemos procurar relacionar os contextos históricos e o uso da expressão observação participante. Com efeito, o que se prescreveu há anos em relação à observação participante pode ser fútil hoje em dia. Por exemplo, um dos objectivos da observação participante era a apreensão da língua das pessoas a serem estudadas (Basham, 1978:25). Mas, hoje em dia, o antropólogo pode ser membro do grupo linguístico que pretenda estudar. Justifica-se, entretanto, a vontade de se compreender a língua nos casos onde há, nela, influência da subcultura. A igreja dos seguidores de Ras Tafari em Maputo, por exemplo, usa uma mescla de 3 línguas quando se comunica. Quase que em simultâneo, são usados inglês, citsonga e português (dispostos em ordem geral de frequência de uso). O inglês, se ainda é digno deste nome, tem sons, palavras, estrutura frásica, significados desconhecidos àlguém que conheça apenas versão corrente da língua. O citsonga e o português são igualmente usados criativamente. No global, essa mescla de línguas, aparentemente familiares para mim, transporta ideias que não me são familiares. Contudo, a observação participante, actualmente, não o único meio para a compreensão dessas ideias... Assim, o que significou observação participante para Malinowski e o que ela significa para mim? Para Malinowski não significou tão-somente sair da Europa para ficar, por algum tempo, na Ásia, perto das pessoas que estudou? Quis isso dizer que ele teve de viver fingidamente com e como os homens que ele estudava? Para mim, não basta estar no local da cerimónia para observar? Preciso eu, como antropólogo, de estar vestido como os seguidores de Ras Tafari se vestem? Exagerando mais a situação, preciso de dizer que Ras Tafari é Jah? Preciso de varrer o pátio; de participar nas contribuições de dinheiro, no consumo da canábis? Foi isso a que os prescritores da observação participante se referiam?

Como suspeitei que o objectivo da minha visita pudesse ser compreendido mal, procurei esclarecé-lo melhor ainda no primeiro dia. Eu disse, no tempo que reservam à apresentação dos visitantes, que gostaria de escrever alguma coisa sobre a ordem Ras Tafari em Moçambique, para além do facto de ser simpatizante da ordem. As duas coisas eram verdade. Informei também que eu já tinha recebido, dum dos seguidores, o convite para visitar a igreja quando ele me viu, num autocarro público, com um livro sobre Marcus Garvey.

Apesar do esclarecimento, tenho a impressão de que fui compreendido mal, pois sinto que tenho sido tratado como que se esperassem que eu me comporte como um seguidor de Ras Tafari; ou talvez eles estejam a tentar converter-me; ou talvez sejam as duas coisas... Propus-me observar todos os eventos em que os seguidores de Ras Tafari participem. Comecei com a observação-participação no dia 21 de Março deste ano. Um dos eventos importantes por observar-participar era a celebração da Páscoa. Seria um evento a ser comemorado em 3 dias. Ou melhor, o evento calharia num domingo e as sextas-feiras e os sábados são dias regulares de culto. Depois de ter perdido o encontro da sexta-feira, esforcei-me em ser pontual no sábado. Assim, tive o privilégio de ver a preparação da cerimónia. Aliás, também participei nela. E fui continuando a participar até quando me serviram a canábis. Serviram-ma duas vezes: a primeira foi numa ocasião informal e a segunda foi durante o tempo em que todos os participantes, com a excepção de mulheres e crianças, a consomem. Nas duas vezes, recusei-a – polidamente claro. Mas, na segunda vez, a situação foi muito séria. Nas entrevistas regulares que tenho tido com um dos membros fundadores da igreja, expliquei-lhe que, apesar de não estar contra a canábis, não sentia motivação para a consumir. Ele respondeu que, no seio da ordem, nada era forçado. Aliás, mencionou seguidores de Ras Tafari que não fumavam a canábis... A situação foi muito séria na segunda vez porque assumi que a igreja já tinha sido informada sobre a minha posição em relação à canábis. Na segunda vez, a canábis no recipiente próprio[2] passou, como acontece normalmente, de mão em mão e de boca em boca entre os seguidores dispostos numa circunferência. Nesse ritual, o recipiente já tinha passado por minhas mãos mas não por minha boca. Depois de algumas voltas, foi muito sério, para mim, observar o recipiente sendo trazido exclusivamente para mim. Já disse que, aí, não participei. O impacto psicológico disso foi tão sério que, minutos depois, desisti de observar e pus-me a reflectir sobre o significado da observação participante...

Agora gozo de relativa paz porque já não me é servida a canábis. Mas sou convidado a participar noutras actividades. Muito recentemente tive o convite para participar na elaboração do anúncio relativo a 25 de Maio, dia da criação da Organização da Unidade Africana... O meu nome, pelo menos como vocativo, não é simplesmente Malengua como me apresentei a eles; chamam-me Ras Malengua, irmão/brother Malengua, ou ainda Jahman, Congoman, etc....

Quando ainda era estudante, pensava que a observação participante era perturbadora da realidade; comparava-a a uma câmara de imagem em frente da qual as pessoas ficam perturbadas; ou, comparava-a àlguém que, com o objectivo de ver o fundo de águas límpidas, acaba vendo a sua cara reflectida nela. Agora, tirando todos os exageros, continuo acreditando nisso; mas o sujeito é perturbado também. O sujeito é diferente da câmara de imagem que se mantém intacta. Depois da relação que se estabelece entre o sujeito e o objecto da antropologia nenhuma das partes continua a mesma...

Referência Bibliográfica

BASHAM, Richard. The cross-cultural study of complex societies. Sydney: Mayfield Publishing Company, 1978.


[1] O professor contou que não teve uma formação estrita em “antropologia”. Antes, a “antropologia” e a “sociologia” confundiam-se durante a sua formação. E, foi somente no dia em que a sua formação estava a terminar oficialmente que ele escolheu o título “antropólogo”.

[2] Na imagem, está representado um dos utensílios através do qual a canábis é consumida.