quinta-feira, 12 de novembro de 2009

'Boss' Cand(r)inho Contra-ataca

O famigerado suposto raptor Boss Candinho (ou Boss Candrinho, como algumas pessoas dizem), cuja propriedade foi assaltada na Beira há cerca de um mês, está de volta com a polícia para mandar prender os assaltantes.

De facto, dois carros cheios de oficiais da polícia e duas ou três pessoas à paisana chegaram no meu bairro na Manga na manhã de ontem. Algumas casas foram cercadas e algumas pessoas presas. Os vizinhos assistiam aparentemente relaxadamente ao que estava a acontecer. Eu também assisti ao episódio mas fiquei confuso pois não estava a compreender o que estava a se passar. Hoje, um amigo disse-me que se tratava de Boss Cand(r)inho contra-atacando - à semelhança do que fez há cerca de um ano. E os trabalhadores de Cand(r)inho ajudaram-no a localizar os assaltantes - o que não parece impossível visto que os trabalhadores e os assaltantes encontraram-se frente a frente.

Parece-me que se impôs um ciclo vicioso no qual, por um lado, algumas pessoas acreditam, sem provar, que Boss Cand(r)inho é efectivamente um raptor e assaltam a sua propriedade e possivelmente querem matá-lo e, por outro lado, Boss Cand(r)inho manda prender os assaltantes. Assim, parece-me que uma possível revolta popular está ficando mais áspera.

E, até agora, não tenho despacho da credencial para realizar inquérito sobre os fundamentos do episódio.

sexta-feira, 2 de outubro de 2009

Inquérito nas Escolas e através delas

Hoje, esperei, sem sucesso, receber uma credencial da Direcção Provincial de Educação e Cultura de Sofala para submeter o inquérito nalgumas escolas nos arredores da cidade da Beira.

Preferi submeter o inquérito nas escolas a submeté-lo nas casas dos residentes da Manga pelos motivos seguintes:

  1. Sinto que existe um estado de desconfiança nas pessoas que vivem na Manga; sinto que, apesar da catarse, emprestando a ideia de Carlos Serra, o problema que as pessoas viam em "Boss Candinho" (e na polícia ou em todos que o protegem) ainda não foi resolvido. Portanto, andar de casa em casa, com papéis e esferográfica, a registar informações referentes aos residentes poderia agravar mais esse estado de desconfiança;
  2. Devido à existência de residentes que não sabem ler nem escrever, nem sempre eles poderiam ter a liberdade de preencher o inquérito individualmente. Também, nada lhes garantiria que os autores das informações não fossem identificáveis;
  3. Os obstáculos possíveis acima poderão ser ultrapassados se eu, com uma credencial, apresentar a minha vontade às direcções das escolas; e,
  4. Tenho a impressão de que as escolas são tidas pelos habitantes da Manga como o lugar de caça de crianças preferido por "Boss Candinho".

A amostra é constituida por 3 escolas. Delas, duas são primárias e uma é secundária; uma das escolas primárias localiza-se a cerca de 500 metros da casa de "Boss Candinho" espoliada, enquanto que a outra é aquela de que se diz terem sido raptadas 3 crianças; a escola secundária, por sua vez, encontra-se distante dessas referências.

Os grupos-alvo são os alunos (crianças, filhos), os professores (adultos, educadores, possivelmente pais) e os pais/encarregados de educação (adultos, educadores).

quinta-feira, 24 de setembro de 2009

Inquérito sobre Crenças

Objectivo

Este inquérito foi feito para colher crenças dos habitantes da Manga. Em termos concretos, ele foi feito para colher a imagem e bases da imagem possíveis que os habitantes da Manga têm em relação a “Boss Candinho”.

Como preencher

  1. Não precisa de escrever o seu nome nesta folha. Assim, ninguém saberá que foi você quem deixou a informação;
  2. Seja honesto ao preencher o inquérito. Se sabe de antemão que não será honesto, não o preencha por favor;
  3. Apenas sublinhe a opção que corresponda à sua resposta. Exemplo: clip_image002; e,
  4. Se tiver outra coisa sobre o assunto por dizer, use, à vontade, o espaço que lhe convier.

Dados do Informante

Idade _____ Sexo _____ Nome do bairro ________________________

a) Aluno da ____ classe  b) Professor da ____ classe  c) Encarregado de Educação

Perguntas e Respostas Possíveis

1. Já ouviu falar em “Boss Candinho”?

a) Sim  b) Não

2. Se já, há quanto tempo ouviu falar nele?

a) Menos de 1 ano  b) 1 ano  c) Mais de 1 ano

3. Quem foi a primeira pessoa que lhe falou dele?

a) Familiar  b) Amigo/colega  c) Professor/director  d) Vizinho  e) Desconhecido

4. Já ouviu que ele rapta crianças?

a) Sim  b) Não

5. Se já, quem foi a primeira pessoa que lhe disse isso?

a) Familiar  b) Amigo/colega  c) Professor/director  d) Vizinho  e) Desconhecido

6. Você já disse àlguém que ele rapta crianças?

a) Sim  b) Não  c) Ainda não  d) Nunca direi

7. Sabe o que ele faz com as crianças raptadas?

a) Não  b) Se sabe, diga o quê __________________________________________________________

8. Sabe quantas crianças foram raptadas por ele?

a) Não  b) Se sabe, diga quantas crianças ele já raptou ____________

9. Você conhece alguma criança raptada por ele?

a) Sim  b) Não

10. Você acredita que ele rapta crianças?

a) Não  b) Se acredita, diga porquê __________________________________________________________

11. Já viu “Boss Candinho”?

a) Não  b) Se já, diga onde ___________________________________

12. Tem alguma coisa mais que queira dizer?

__________________________________________________________

13. “Três pessoas da mesma família morrem num acidente.”

a) É destino  b) É azar  c) Depende  d) Não sei

14. Existe azar ou sorte?

a) Sim  b) Não  c) Depende  d) Não sei

15. Existe destino?

a) Sim  b) Não  c) Depende  d) Não sei

16. Se existe destino, quem faz destino?

a) Deus  b) Curandeiro  c) Feiticeiro  d) Qualquer pessoa  e) Depende

17. “O seu vizinho fica rico de repente.”

a) É destino  b) É sorte  c) É esforço  d) É droga (magia)  e) Não sei

18. “Um familiar seu morre de repente.”

a) É destino  b) É azar  c) É feitiço  d) Não sei

19. Existe droga (magia)?

a) Sim  b) Não  c) Não sei

20. Se existe droga, ela dá resultado porque prejudica outras pessoas? Exemplo: “um aluno drogado só tira notas altas porque a nota dum colega seu diminui-se?”

a) Sim  b) Não  c) Não sei

21. Boss Candinho” é drogado?

a) Sim  b) Não

22. O que é droga (magia)?

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23. O que é feitiçaria?

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24. Tem alguma coisa mais que queira dizer?

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Muito obrigado pela sua colaboração!

Oportunamente, informar-lhe-ei sobre o resultado do inquérito.

(Concebi este inquérito para ser compreendido pelas pessoas que vivem na Manga. Para isso, procurei, no máximo, fazer com que o texto fosse o mais claro possível através do uso de frases simples e palavras acessíveis. Por exemplo, ao nível semântico, preferi usar a palavra droga, que é empregada com o mesmo significado que a palavra magia, por ser usada comummente.

Fiz o inquérito para testar uma hipótese minha. Nela, a imagem de "Boss Candinho" como raptor de crianças não se baseia no facto de ele ser efectivamente um raptor. Antes, essa imagem baseia-se num conhecimento preexistente a "Boss Candinho", segundo o qual, o enriquecimento extraordinário - a que ele é associado - é resultado duma acção voluntária de especialistas em domesticação de cursos de vida, curandeiros e/ou feiticeiros, e daqueles que se candidatam a serem ricos. Esses candidatos têm que seguir as prescrições dos especialistas. E uma delas consiste em se prejudicar vida alheia. Ora, "Boss Candinho", com características de rico extraordinário, é concebido, temido e repudiado sob esse conhecimento.)

terça-feira, 15 de setembro de 2009

"'Boss' Candinho": Mera Imaginação ou Realidade?

"Boss Candinho" existe realmente - não se entenda esta frase como sendo resposta à pergunta acima. Com a frase, pretendo simplesmente dizer que existe alguém conhecido como "Boss Candinho". O que ainda não compreendi é se o que se diz sobre ele é real ou uma mera invenção dos habitantes da Manga, arredores da cidade da Beira. Com efeito, relativamente a "Boss Candinho", diz-se e, provavelmente, pensa-se que ele seja raptor de crianças. Aliás, isto é apenas uma das duas versões que ouvi. A maioria das pessoas com quem falei disse que ele raptava somente crianças, enquanto que uma ou duas pessoas disseram-me que ele raptava adultos também. ...Se essa imagem do "Boss Candinho" não partiu da realidade, ela, pelo contrário, tem ido à realidade. O vídeo abaixo mostra como essa imagem de raptor, criada a posteriori ou a priori, conduziu à invasão da propriedade do "Boss Candinho" ontem. Hoje, ouvi duas mulheres conversando e uma delas disse que se devia destruir tudo o que era dele. Ontem, uma rapariga, quando ouviu rumores de que ele estava preso numa esquadra local, disse que a polícia devia entregá-lo à população para ser morto.

Já havia mais de 20 anos que não ouvia histórias como a do "Boss Candinho". Quando andava na escola primária, ouvi a história do/a aterrorizador/a "Tatá mamã! Tatá papá!". Nessa altura, a imagem de "Tatá mamã! Tatá papá!" que eu tinha, porque inculcaram-ma, era de uma mulher caucasiana que andava de carro com muitos doces. Ela usava os doces como engodo para raptar crianças. ...Felizmente, nunca cheguei de ver a/o "Tatá mamã! Tatá papá!". Se a/o tivesse visto, talvez não estaria a escrever estas palavras agora. Sobrevivi também a uma outra figura aterrorizadora, mais ou menos contemporânea de "Tatá mamã! Tatá papá!"; era a figura do nhamadjuia, que nos assombrava de quando em quando. Nhamadjuia, palavra da língua cindau, significa, na minha tradução tosca, "aqueles que trabalham com redes". De facto, nhamadjuia eram - e são - pescadores e que, se quisessem aumentar a quantidade de peixe capturado, deviam usar olhos, nariz, orelhas, boca, unhas e órgãos sexuais humanos. Como se entrevê, a palavra nhamadjuia, à semelhança de "Boss Candinho", mas ao contrário de "Tatá mamã! Tatá papá!", não conota a ideia de raptor em si.

Suponho que "Boss Candinho" signifique tão-somente "Patrão Candinho". Se ele não é efectivamente raptor de crianças ou de seres humanos, por hipótese, o nome que as pessoas lhe atribuem pode ajudar a se compreender a ligação entre ele e a figura do raptor. Se a minha suposição de que "Boss Candinho" significa "Patrão Candinho" é acertada, então aparentemente há motivos bastantes para a atribuição do nome. Com efeito, há um hiato inacessível entre a vida do "Boss" e a vida da maioria dos habitantes da Manga - pelo menos, daqueles que moram em volta dele. Há cerca de 4 anos, disse uma vizinha sua, ele começou a construir a sua casa numa área ocupada por um mercado informal que existia havia cerca de 25 anos. Os trabalhadores do mercado foram indemnizados. E o "Boss" construiu casas desproporcionadamente grandes e luxuosas. Disseram-me que não eram as suas únicas casas. Tinha 3 outras. Também tinha 4 camiões e andava num carro de luxo. Ora, "Boss Candinho", nestas circunstâncias, pode ser - e é efectivamente - relacionado com rapto, tráfico de seres humanos, droga.[1] Esta frase é uma hipótese atrevida minha baseada no juízo espontâneo que os habitantes da Manga fazem em relação a ricos misteriosos.

Quando cheguei na Manga há mais de 2 meses e meio, ouvi a história  de "Boss Candinho" - raptor de crianças. Recentemente, disseram-me que ele já não raptava crianças pessoalmente visto que as pessoas já o conheciam; antes, mandava os seus colaboradores. Quando pergunto se alguém conhece alguma criança que tenha sido raptada, não tenho tido resposta precisa. "Onde há fumo, há fogo." - um homem disse-me.

Antes do incidente de ontem, testemunhei dois casos em que o "fumo", por si só, "queimou". Num deles, um sobrinho meu, que devia estar na escola, voltou pelo caminho alegando que o carro do "Boss Candinho" estava estacionado algures à espera de crianças. No outro caso, uma criança, apesar de estar com a mãe, chorou medonhamente quando viu um taxi conduzido por um vizinho estacionado...


[1] A palavra droga é usada comummente, na Manga pelo menos, para se referir a poderes extraordinários dados por curandeiros. Às vezes, a pessoa drogada é relacionada com morte de seus parentes.

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sábado, 1 de agosto de 2009

A Feitiçaria: entre o Discurso e a Realidade

Feiticaria O infortúnio não ocorre por acaso - isto parece ser crença dalgumas pessoas que habitam a Manga, um dos bairros dos arredores da cidade da Beira. É só por cautela que me abstenho de dizer que se trata duma crença generalizada. Por outro lado, assumindo que existe uma proporcionalidade inversa entre a crença na feitiçaria e a crença no acaso, seria importante investigar-se a existência ou não, nesses habitantes, da crença no acaso. As línguas faladas localmente seriam o nível básico dessa investigação, cujo objectivo seria procurar palavras que correspondam a acaso.

Manga é o bairro onde nasci e vivi até aos meus 20 anos. Depois de ter vivido fora por 10 anos, encontro-me de volta à Manga há já 1 mês. Esse tempo de ausência, apesar das minhas visitas regulares, foi suficiente para eu não reconhecer os meus conterrâneos, pelo menos, num aspecto. Quando eles falam de infortúnios, fazem existir os seus causadores, os feiticeiros, através das suas palavras e das suas mentes.

Feiticeiros, identificados ou não e, quiçá, existindo independentemente das palavras e das crenças ou não, são pessoas que, por meios extraordinários, causam insucessos, doenças e/ou mortes nas suas vítimas. Contudo, não são quaisquer insucessos, doenças ou mortes que são atribuíveis aos feiticeiros. Os infortúnios causados por eles têm uma marca característica - a anormalidade. Tenho a impressão de que os velhos, os pobres, nalguns casos, podem morrer; uma doença efémera pode afectar alguém. Com pessoas e coisas dessas classes, os feiticeiros não se interessam! Pelo contrário, quando se trata duma morte precoce, da morte duma pessoa abastada, da morte duma pessoa que não adoecera (aos olhos dos habitantes locais), então deseja-se que o/a feiticeiro/a seja oficialmente identificado/a, visto que ele/a já foi entrevisto/a. A identificação precisa e oficial do/a feiticeiro/a é feita por especialistas... Sendo os feiticeiros reais ou não, uma realidade, entretanto, é que as pessoas tidas como tais, em casos extremos, são punidas até a morte... Por outro lado, algumas pessoas, a priori, protegem-se de possíveis ataques de feiticeiros...

Vejo-me confrontado com o acto habilidoso de construção de seres com poderes extraordinários através da mente e de palavras; vejo-me num campo bem atraente para pesquisa, mas tenho que ver como começar...

quarta-feira, 8 de julho de 2009

Quem Estuda(rá) o Antropólogo?

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O antropólogo, através da antropologia, estuda o homem no geral - pelo menos, este é o significado etimológico dessas palavras, ignorando, por enquanto, as suas imprecisões. Mas, segundo alguns autores, esse é o fim último da antropologia ou a fase mais avançada da investigação nessa área (Marconi & Presotto, 1989: 26; Copans, 1999: 13). Assim, num caso ou noutro, o objecto de estudo da antropologia inclui o próprio antropólogo.

Nas fases mais primárias da investigação, entretanto, o antropólogo é o sujeito. Ele estuda o Outro, como diz Adams (1998: 1), antes de fazer uma reflexão sobre si. Possivelmente em contradição com Lévi-Strauss (Marconi & Presotto, 1989: 26), Adams (1998: 1) diz que a antropologia é "o estudo sistemático do Outro.”[1] Eu diria que o homem exótico ou o Outro quase que nunca deixou de ser a simpatia talvez não do antropólogo mas do etnógrafo e do etnólogo. Talvez fosse mais acertado usarmos um desses dois últimos substantivos ou mesmo os dois para designar muitos antropólogos.

Parece-me que ninguém nos instrui abertamente a nos limitarmos a estudar o Outro na antropologia. Mas, pela prática dos noviços, acredito que essa informação nos é transmitida. Pode até não nos parecer estarmos a estudar o Outro, o Exótico, porque "o Outro sou eu próprio [...] porque o universo social contemporâneo dissolveu até ao mais profundo de cada um de nós as referências de identidades que ordenam as principais diferenças de civilização, de cultura, de género, de pessoa." (Copans, 1999: 10). Todavia, apesar dessa alegada dissolução, hoje estudamos o nosso vizinho que é diferente de Nós. Estudamos o nosso vizinho marginal; que tem comportamento de risco em relação ao VIH e SIDA; que tem uma religião diferente da nossa ou que é membro duma seita. Com efeito, esses vizinhos são quem atrai os antropólogos. Talvez um pouco diferentemente de Adams, eu diria que, hoje, como sempre talvez, queremos sempre ajudar nosso vizinho-objecto de estudo. Para Adams (1998: 2), o Outro nunca é moralmente neutro: ele é melhor ou pior do que Nós, é diferente ou semelhante. Para mim, Nós, os antropólogos, somos sempre melhores e diferentes. Acho que uma prova disso é a própria antropologia de intervenção. Pretendemos, com a nossa pesquisa, fazer com que os nossos vizinhos deixem de ser marginais; deixem de ter comportamentos de risco; deixem crendices de lado. Assim, o antropólogo é o modelo que os Outros devem seguir, como se ele se compreendesse a si mesmo.

De facto, quem estudará o antropólogo? Será o próprio antropólogo? Quem fará etnografia e etnologia sobre esse grupo de pessoas designadas antropólogos? Nesse caso, talvez essas disciplinas deixariam de ter a parte etno da palavra por alguns acreditarem ser pejorativa (Ver Chapman, McDonald & Tonkin, 1989: 12-14). O antropólogo não quereria, pois, rebaixar-se a si mesmo... Apegando-me àquilo que me ensinaram, quem estudará o exotismo na vida do antropólogo? Quem estudará antropólogos desempregados ou que estejam a fazer algo diferente da antropologia para continuarem a viver; quem estudará antropólogos que são formados para formarem outros antropólogos, como se o fim da antropologia fosse produzir antropólogos; quem, pois, estudará esse exotismo que parece que só os outros é que vêem? Como é que o antropólogo se atreverá a estudar a si mesmo, visto que a antropologia estuda o homem no geral, sem fazer antes uma etnologia de si?

Referências Bibliográficas

ADAMS, William Y. The philosophical roots of anthropology. Stanford: CSLI Publications, 1998.

CHAPMAN, Malcolm, MCDONALD, Maryon, TOKIN, Elizabeth. History and ethnicity. London/New York: Portledge, 1989.

COPANS, Jean. Introdução à etnologia e à antropologia. Publicações Europa-América, Lda., 1999.

MARCONI, Marina de Andrade, PRESOTTO, Zélia Maria Neves. Antropologia: uma introdução. 2. ed. São Paulo: Atlas, 1989.


[1] Texto traduzido pelo autor do inglês

segunda-feira, 15 de junho de 2009

"Aprimorando" o Registo da Informação

Ultimamente, tenho ficado muito encorajado pela liberdade de registo de informação que me é dada pelos membros da igreja dos seguidores de Ras Tafari, assim como pelo aumento e estreitamento das minhas relações com eles. Na verdade, essa liberdade, aparentemente limitada no princípio, foi me dada desde o começo das nossas relações.

Preferi usar essa liberdade de maneira subtil nos primeiros momentos. Entretanto, contrariamente ao que tinha perspectivado, passei a ficar muito limitado em relação aos apontamentos feitos em papel durante as cerimónias, desde o dia em que um seguidor, também visitante da igreja, ordenou-me a me limitar só a ouvir. Mas, depois de ele ter sido informado publicamente pelos anciãos da igreja que eu recebera a sua autorização para fazer apontamentos, ele disse-me que podia continuar a escrever, o que, até este momento, acho prudente não fazer a não ser em entrevistas particulares que tenho vindo a realizar com um ancião. Em contrapartida, tenho sido chamado para fazer registo de imagens, como é o caso do vídeo abaixo, que foi o único que, para cuja publicação, pedi autorização.

Portanto, tenho que aprimorar a memorização para fazer o registo das informações em papel quando estiver sozinho...

quinta-feira, 14 de maio de 2009

Sobre a Observação Participante

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O que significa observação participante? Imagino que seja uma expressão muito repetida entre os antropólogos. E tenho a impressão de que ela seja muito importante para a antropologia, por se tratar de uma das suas marcas distintivas (Basham, 1978: 25). O seu significado parece claro. Todavia, tive o privilégio de ter um professor[1] que questionou essa clareza aparente. Pois, para ele, a expressão observação participante é uma associação de palavras impossível. Com efeito, os significados a que cada uma das duas palavras se refere não se misturam; é impossível, para ele, observar-se e participar-se em simultâneo – como se a expressão fosse observar participando...

Gostaria de me referir, por alguns instantes, à minha experiência no uso da observação participante na pesquisa que estou realizando sobre os seguidores de Ras Tafari em Moçambique; em Maputo particularmente. Tive o privilégio de ser aceito nas suas cerimónias. Ao seguidor que me atendeu, eu disse que o meu objectivo era visitar o grupo. O pedido foi aceito, mas tinha de vestir calças visto que eu estava de calções (com uma câmara de fotografia e de filme num dos bolsos). Perguntei-lhe se me era permitido tirar fotografias e ele respondeu-me que poderia fazé-lo só no fim da cerimónia. De facto, a mim, interessava mais observar e não participar; a mim, interessava mais ver, ouvir, fotografar, filmar, fazer registos no meu caderno de notas, etc. E parece-me claro que, para isso, não precisava de vestir calças, descalçar os meus sapatos, cobrir os braços – como alguém me ordenou numa das vezes seguintes.

Admito a possibilidade de ter sido compreendido mal; é possível que tenha sido compreendido que eu quisesse participar. Neste ponto, acho que devemos procurar relacionar os contextos históricos e o uso da expressão observação participante. Com efeito, o que se prescreveu há anos em relação à observação participante pode ser fútil hoje em dia. Por exemplo, um dos objectivos da observação participante era a apreensão da língua das pessoas a serem estudadas (Basham, 1978:25). Mas, hoje em dia, o antropólogo pode ser membro do grupo linguístico que pretenda estudar. Justifica-se, entretanto, a vontade de se compreender a língua nos casos onde há, nela, influência da subcultura. A igreja dos seguidores de Ras Tafari em Maputo, por exemplo, usa uma mescla de 3 línguas quando se comunica. Quase que em simultâneo, são usados inglês, citsonga e português (dispostos em ordem geral de frequência de uso). O inglês, se ainda é digno deste nome, tem sons, palavras, estrutura frásica, significados desconhecidos àlguém que conheça apenas versão corrente da língua. O citsonga e o português são igualmente usados criativamente. No global, essa mescla de línguas, aparentemente familiares para mim, transporta ideias que não me são familiares. Contudo, a observação participante, actualmente, não o único meio para a compreensão dessas ideias... Assim, o que significou observação participante para Malinowski e o que ela significa para mim? Para Malinowski não significou tão-somente sair da Europa para ficar, por algum tempo, na Ásia, perto das pessoas que estudou? Quis isso dizer que ele teve de viver fingidamente com e como os homens que ele estudava? Para mim, não basta estar no local da cerimónia para observar? Preciso eu, como antropólogo, de estar vestido como os seguidores de Ras Tafari se vestem? Exagerando mais a situação, preciso de dizer que Ras Tafari é Jah? Preciso de varrer o pátio; de participar nas contribuições de dinheiro, no consumo da canábis? Foi isso a que os prescritores da observação participante se referiam?

Como suspeitei que o objectivo da minha visita pudesse ser compreendido mal, procurei esclarecé-lo melhor ainda no primeiro dia. Eu disse, no tempo que reservam à apresentação dos visitantes, que gostaria de escrever alguma coisa sobre a ordem Ras Tafari em Moçambique, para além do facto de ser simpatizante da ordem. As duas coisas eram verdade. Informei também que eu já tinha recebido, dum dos seguidores, o convite para visitar a igreja quando ele me viu, num autocarro público, com um livro sobre Marcus Garvey.

Apesar do esclarecimento, tenho a impressão de que fui compreendido mal, pois sinto que tenho sido tratado como que se esperassem que eu me comporte como um seguidor de Ras Tafari; ou talvez eles estejam a tentar converter-me; ou talvez sejam as duas coisas... Propus-me observar todos os eventos em que os seguidores de Ras Tafari participem. Comecei com a observação-participação no dia 21 de Março deste ano. Um dos eventos importantes por observar-participar era a celebração da Páscoa. Seria um evento a ser comemorado em 3 dias. Ou melhor, o evento calharia num domingo e as sextas-feiras e os sábados são dias regulares de culto. Depois de ter perdido o encontro da sexta-feira, esforcei-me em ser pontual no sábado. Assim, tive o privilégio de ver a preparação da cerimónia. Aliás, também participei nela. E fui continuando a participar até quando me serviram a canábis. Serviram-ma duas vezes: a primeira foi numa ocasião informal e a segunda foi durante o tempo em que todos os participantes, com a excepção de mulheres e crianças, a consomem. Nas duas vezes, recusei-a – polidamente claro. Mas, na segunda vez, a situação foi muito séria. Nas entrevistas regulares que tenho tido com um dos membros fundadores da igreja, expliquei-lhe que, apesar de não estar contra a canábis, não sentia motivação para a consumir. Ele respondeu que, no seio da ordem, nada era forçado. Aliás, mencionou seguidores de Ras Tafari que não fumavam a canábis... A situação foi muito séria na segunda vez porque assumi que a igreja já tinha sido informada sobre a minha posição em relação à canábis. Na segunda vez, a canábis no recipiente próprio[2] passou, como acontece normalmente, de mão em mão e de boca em boca entre os seguidores dispostos numa circunferência. Nesse ritual, o recipiente já tinha passado por minhas mãos mas não por minha boca. Depois de algumas voltas, foi muito sério, para mim, observar o recipiente sendo trazido exclusivamente para mim. Já disse que, aí, não participei. O impacto psicológico disso foi tão sério que, minutos depois, desisti de observar e pus-me a reflectir sobre o significado da observação participante...

Agora gozo de relativa paz porque já não me é servida a canábis. Mas sou convidado a participar noutras actividades. Muito recentemente tive o convite para participar na elaboração do anúncio relativo a 25 de Maio, dia da criação da Organização da Unidade Africana... O meu nome, pelo menos como vocativo, não é simplesmente Malengua como me apresentei a eles; chamam-me Ras Malengua, irmão/brother Malengua, ou ainda Jahman, Congoman, etc....

Quando ainda era estudante, pensava que a observação participante era perturbadora da realidade; comparava-a a uma câmara de imagem em frente da qual as pessoas ficam perturbadas; ou, comparava-a àlguém que, com o objectivo de ver o fundo de águas límpidas, acaba vendo a sua cara reflectida nela. Agora, tirando todos os exageros, continuo acreditando nisso; mas o sujeito é perturbado também. O sujeito é diferente da câmara de imagem que se mantém intacta. Depois da relação que se estabelece entre o sujeito e o objecto da antropologia nenhuma das partes continua a mesma...

Referência Bibliográfica

BASHAM, Richard. The cross-cultural study of complex societies. Sydney: Mayfield Publishing Company, 1978.


[1] O professor contou que não teve uma formação estrita em “antropologia”. Antes, a “antropologia” e a “sociologia” confundiam-se durante a sua formação. E, foi somente no dia em que a sua formação estava a terminar oficialmente que ele escolheu o título “antropólogo”.

[2] Na imagem, está representado um dos utensílios através do qual a canábis é consumida.

quinta-feira, 16 de abril de 2009

Os "Seguidores" de Ras Tafari em Maputo

Dentro de algum tempo, publicarei o que tenho estado a escrever sobre o meu contacto com os membros da igreja dos seguidores de Ras Tafari em Maputo.